As alterações que o projeto de reforma tributária (PEC 45) sofreu no Senado foram custos políticos necessários para sua aprovação, observou Bernardo Appy[1], secretário extraordinário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda. Mas há alterações que são grandes demais, com custo muito alto para o país e para as futuras gerações.
Uma das mais importantes, aceita pelo senador Eduardo Braga, relator do texto aprovado no Senado, beneficiou o agronegócio, praticamente integrando a Lei Kandir à PEC 45. Criada em 1996, no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998) – quando o Brasil precisava desesperadamente de dólares -, a Lei Kandir criou incentivos para impulsionar as exportações brasileiras. Em 2003, uma emenda constitucional foi aprovada para turbinar esses incentivos, reforçando o apoio à exportação de commodities ‘in natura’ ou semiprocessadas (EC 42 de 2003).
Desindustrialização e privilégios
Os incentivos dados ao agronegócio brasileiro tiveram graves consequências para o desenvolvimento do país e contribuem para criar um ciclo pernicioso para a economia. Ao beneficiar um setor que agrega pouco valor, gera empregos de baixa qualidade, tem grandes impactos ambientais e péssimo histórico em direitos humanos deu-se grande peso econômico e político para quem pouco contribui para o desenvolvimento justo e sustentável.
A Lei Kandir criou um diferencial competitivo falso ao setor agrícola em relação ao setor industrial, que gera produtos de maior valor agregado e empregos de maior qualidade, e por isso teria um efeito mais positivo no desenvolvimento do país. Esse diferencial competitivo não deu apenas condições para o agronegócio concorrer com o agronegócio de outros países, mas também faz com que dentro do Brasil o agronegócio seja mais competitivo que outros setores ao atrair investimentos, por exemplo. Em paralelo, o agronegócio mais espaço na agenda política e conquistou mais subsídios e incentivos enquanto o espaço da indústria diminuiu. Na disputa política dentro dos diferentes governos dos últimos 30 anos, os interesses do agronegócio foram privilegiados.
Mesmo as escolhas macroeconômicas das últimas décadas pareceram beneficiar o agronegócio. Durante anos a cotação do dólar se manteve sobrevalorizada, algo positivo para os interesses dos empresários do campo, mas negativo para a indústria, que em geral depende mais das importações. Esse foi um dos fatores que contribuiu com o processo de desindustrialização vivido pelo Brasil e para a dificuldade do país em superar plenamente a condição de subdesenvolvimento.
Agrotóxicos e regime diferenciado
A PEC 45, aprovada no Senado, contribui para manter essa situação ao incluir produtos agropecuários, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais ‘in natura’ no regime diferenciado, com uma redução de 60% em suas alíquotas. É importante notar que o texto aprovado pelos senadores não inclui ressalvas ou condicionantes, ou seja, o setor campeão de trabalho análogo ao escravo ganhará um imenso privilégio de isenção fiscal mesmo se continuar com práticas de escravidão moderna, não respeitar a legislação ambiental e ou grilar terras.
Outro ponto problemático no texto da reforma tributária se refere aos ‘insumos agropecuários e aquícolas’ que também foram incluídos na lista de regime diferenciado, recebendo os 60% de redução na alíquota. Mesmo que parte dos insumos agropecuários sejam importantes e mereçam o benefício, escondido dentro do bojo estão os agrotóxicos. Vale frisar que parte dos agrotóxicos usados no Brasil hoje são proibidos em outros países, como por exemplo na União Europeia, que continua produzindo e exportando esses venenos para cá. É o fenômeno ‘nimby’ – sigla em inglês que diz “Not In My BackYard”, algo como “No Meu Quintal, Não” – quando países proíbem o uso de determinados produtos ou tecnologias em seus territórios, mas continuam produzindo e exportando para outros países.
Esse é uma situação que reforça uma posição subalterna do Brasil na economia global: importamos veneno de alto valor agregado e oferecemos incentivos fiscais para isso, usamos tais venenos para produzir itens de baixo valor agregado, gerando empregos ruins, violando direitos e destruindo o meio ambiente; e depois exportamos esses produtos (com incentivos fiscais) para países que vão agregar valor e revendê-los.
Benefícios fiscais sem responsabilidade social
A proposta de reforma tributária poderia oferecer condições especiais para os bioinsumos, dando um incentivo fiscal para tais produtos maior que para os agrotóxicos. Com o tempo, o efeito seria gerar importante e necessária transição para tecnologias de controle de pragas e fertilização que são mais seguras e sustentáveis. O Brasil hoje é campeão mundial no uso de agrotóxicos e vive uma grave situação de contaminação de trabalhadores rurais e do meio ambiente.
A reforma tributária não é apenas uma ferramenta de arrecadação, trata-se de um poderoso arcabouço que ajuda a criar incentivos e desincentivos para determinados setores e práticas, e com isso apontar o caminho de desenvolvimento do país. Infelizmente, o texto aprovado pelos senadores, e que agora vai para a Câmara dos Deputados para nova votação, aponta para um Brasil subdesenvolvido, dependente da exportação de produtos de baixo valor agregado e com o agronegócio desproporcionalmente privilegiado frente aos outros setores. Não cria incentivos específicos que deem um diferencial competitivo para práticas sustentáveis na agricultura, como o uso de bioinsumos, a produção orgânica e agroecológica; e nem cria condicionantes de acesso aos benefícios fiscais para aqueles produtores envolvidos com trabalho escravo, trabalho infantil, desmatamento e grilagem de terras.
Do jeito que está, a PEC 45 não contribui para a redução das desigualdades no país, em especial no Brasil rural.
[1] https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/11/11/reforma-tributaria-excecoes-sao-custo-politico-e-aprovacao-e-momento-historico-diz-appy.ghtml