O Brasil atravessa a maior crise sanitária, social e econômica da sua história. Mais de meio milhão de brasileiros morreram pela Covid-19; 30 milhões estão desempregados ou subutilizados; e 120 milhões encontram-se em estado de insegurança alimentar, dos quais 20 milhões já padecem de fome agora. A história econômica demonstra que em crises dessa magnitude, a tributação das altas rendas e riquezas são medidas necessárias. Hoje, instituições (como o FMI, o Banco Mundial e a OCDE, por exemplo) e governos de países centrais (como os EUA, por exemplo) estão propondo a elevação dos impostos para os mais ricos e sobre os lucros extraordinários das grandes corporações para financiar serviços essenciais, “em uma crise que afetou de maneira desproporcional os segmentos mais pobres da sociedade”.
A carga tributária é elevada? Para quem?
A tributação progressiva no Brasil é imperativo civilizatório. É falso que a nossa carga tributária seja elevada para todos. É verdade que ela é elevada para os pobres, porque os impostos sobre o consumo representam quase 50% do total arrecadado (ante 17% nos EUA). Os ricos têm carga insignificante porque os tributos que incidem sobre a renda e a riqueza são baixos na comparação internacional: nos EUA, esses dois itens, em conjunto, representam 60% da arrecadação de impostos; no Brasil, apenas 23%.
A baixa tributação sobre renda e riqueza
A carga tributária sobre a renda, lucro e ganho de capital no Brasil é de 7,0% do PIB, patamar muito inferior à média da OCDE (11,4% do PIB) e a verificada em países como Itália (13,1% do PIB) e Canadá (15,4% do PIB), por exemplo. Nos países capitalistas centrais, o Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) é o pilar central do sistema tributário. A arrecadação do IRPF no Brasil (2,5% do PIB) é cinco vezes menor que a arrecadação do IRPF nos EUA (12,5% do PIB), por exemplo. Isso ocorre, sobretudo, porque somos párias internacionais em dois quesitos: primeiro, porque não tributamos a distribuição de lucros e dividendos distribuídos aos sócios e acionistas das empresas; segundo, porque a alíquota máxima do IRPF (27,5%) está muito abaixo do patamar dos países centrais (entre 40% e 60%) e mesmo de latino-americanos (40% no Chile, por exemplo). Por conta dessas injustiças, os endinheirados têm 70%, no mínimo, da sua renda isenta de tributos.
A proposta dos partidos da oposição
O cerne da reforma tributária no Brasil é a ampliação da tributação das altas rendas e riquezas e a redução da tributação do consumo. Esse é o âmago da proposta de reforma protocolada no Congresso Nacional pelos seis partidos da oposição (PCdoB, PDT, PSB, PSOL, PT e Rede). Trata-se da “Reforma Tributária Solidária, Justa e Sustentável” [1] formulada com base em estudos elaborados por entidades de auditores fiscais (Fenafisco e Anfip) e organizações da sociedade civil (Oxfam Brasil, Conselho Federal de Economia, dentre outras).[2]
O ilusionismo da proposta do governo de reformar o Imposto de Renda
À primeira vista, a proposta de reforma do Imposto de Renda apresentada pelo governo (PL n° 2337/21) representaria conquista do campo popular, na medida em que incorpora bandeiras do campo progressista: isenção do IRPF para camadas de baixa renda; revogação das excêntricas figuras da “isenção dos lucros e dividendos distribuídos aos sócios e acionistas” e da “dedução dos juros no lucro tributável sobre o capital próprio”; e diversas medidas de combate à elisão e à evasão fiscal.
Proposta regressiva e inconstitucional
Entretanto, a ilusão logo se esvai. Paradoxalmente, o Projeto de Lei n° 2337/21 reduz ainda mais as receitas e a participação relativa do Imposto de Renda na arrecadação total. Além disso, concede tratamento privilegiado às rendas do capital e às pessoas físicas com altas rendas, aprofundando a inconstitucionalidade da tributação e a vergonhosa regressividade do sistema. A queda da receita do Imposto de Renda agravará a questão fiscal, restringirá a ação do Estado, ampliará o desequilíbrio federativo (redução dos recursos transferidos a estados e municípios) e incentivará a “pejotização” do mercado de trabalho.
- A alíquota máxima do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) foi mantida em 27,5%. Não há justiça fiscal quando quem ganha R$ 6 mil e quem ganha R$ 600 mil por mês pagam a mesma alíquota;
- Os ricos pagarão menos imposto efetivo. Sem alíquotas maiores sobre as altas rendas, a correta isenção na base da pirâmide, se favorece as classes de baixa renda, também beneficia os mais ricos, que já pagam pouco imposto e pagarão menos ainda, uma vez que a isenção também amplia as deduções no topo da pirâmide;
- A tributação da distribuição de lucros e dividendos tem de respeitar o princípio da capacidade contributiva. A cobrança de alíquota linear de 20% para todas as rendas e a isenção para quem recebe lucros e dividendos inferiores a R$ 20 mil por mês, não respeita o princípio liberal da equidade, segundo o qual todas as rendas auferidas (do trabalho e do capital) devem ser submetidas à mesma tabela progressiva do IRPF. Não há justiça fiscal, quando se taxa igualmente quem recebe lucros e dividendos de R$ 30 mil e quem recebe R$ 30 milhões;
- A exagerada redução de alíquotas do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ). A proposta inicial prevê redução gradual da alíquota do IRPJ (de 15% para 10%). No entanto, o relatório do relator propõe redução da alíquota do IRPJ dos atuais 15% para 2,5%, a partir de 2023. Estima-se que esse corte radical implicará em perda de receita superior a R$ 90 bilhões (2023), aprofundando a injustiça tributária, a crise fiscal, o desequilíbrio federativo e a “pejotiozação” do mercado de trabalho;
- A manutenção das brechas para a elisão e a evasão fiscal. A proposta original prevê um conjunto de medidas para combater a elisão e a evasão fiscais (como destaque para a revogação da “dedução dos juros sobre o capital próprio no lucro tributável” e da “amortização fiscal do ágio para aquisições”). Entretanto, o relator pretende reverter boa parte dessas medidas, o que reduziria a arrecadação do IRPF;
- A desoneração do capital financeiro. Inaceitável a proposta que desonera o capital financeiro, reduzindo a tributação das aplicações (de 22,5% para 15%) tanto para as de longo prazo (renda fixa e fundos de investimento) quanto para as especulativas (operações em Bolsa). Da mesma forma, não se pode aceitar que os fundos do agronegócio e das grandes empresas da construção civil permaneçam isentos de tributação.
Em suma, o projeto do Ministério da Economia apresenta insuficiências graves que limitam a suposta progressividade pretendida e conserva a inconstitucionalidade do sistema tributário, pois continua a não observar os princípios da “igualdade material tributária” e da “capacidade econômica do contribuinte” previstos na Constituição da República.
É inaceitável o “rolo compressor” do Congresso Nacional
Não se pode aceitar que não haja debate amplo e plural sobre um tema tão crucial para o Brasil que é um dos países mais desiguais do mundo. Nesse sentido, incompreensível a aprovação, pela Câmara dos Deputados, de requerimento de urgência[3] para a proposta de reforma do Imposto de Renda, o que permite que a proposta seja votada em plenário imediatamente.
A reforma do imposto de renda deveria expressar a gravidade da crise e o anseio da sociedade brasileira
O governo e o parlamento brasileiros deveriam se colocar à altura da crise atual e pensar alternativas para o grave cenário pós-Covid, inspirando-se na experiência de governos liberais (EUA, por exemplo) e instituições do mainstream das finanças internacional (como o FMI, o Banco Mundial e a OCDE, por exemplo), que propõem aumentar os impostos para os mais ricos e para as empresas, para financiar programas sociais e reativar a economia.
O governo e o parlamento brasileiros também deveriam estar em sintonia com o anseio da sociedade. Um dos achados da pesquisa “Nós e as Desigualdades” (Oxfam Brasil /Datafolha) [4] é que “84% dos brasileiros concordam com o aumento dos impostos para pessoas mais ricas para financiar políticas sociais no Brasil”. O estudo também mostra que quase nove em cada dez pessoas acreditam que não há progresso nacional possível, se não se reduzirem as desigualdades.
São Paulo, 10 de agosto de 2021.
Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (FENAFISCO)
Oxfam Brasil